quinta-feira, 8 de setembro de 2011

SOU UM DOS 999.999 POETAS DO PAÍS - por Afonso R. de Sant'Anna

INTRODUÇÃO SÓCIO-INDIVIDUAL DO TEMA

Sou um dos 999.999 poetas do país que escrevem enquanto caminhões descem pesados de cereais e celulose
ministros acertam o frete dos pinheiros carregados em navios alimentados com o óleo que o mais pobre pagará.

(- Estes são dados sociais
de que não quero falar, embora

tenha aprendido em manuais

que o escritor deve tomar o seu lugar na História

e o seu cotidiano alterar.)


Sou um dos 999.999 poetas do país

com mãe de olhos verdes e pai amulatado

ela - a força de áries na azáfama da casa

......a decisão do imigrante que veio se plantar

ele - capitão de milícias tocando flauta em meio

às balas

......lendo salmos em Esperanto sobre a mesa

......domingueira.


  (- Estes são sinais particulares

......que não quero remarcar, embora

......tenha aprendido em manuais

......que o que distingüe a escrita do homem

......são seus traços pessoais que ninguém pode

......imitar.)



Sendo um dos 999.999 poetas do país

desses sou um dos 888.888

que tiveram Mário, Bandeira, Drummond,

Murilo, Cecília, Jorge e Vinícius como mestres

e pelas noites interioranas abriam suas obras

lendo e reescrevendo os versos deles nos meus versos

com deslumbrada afeição.



Desses sou um dos 777.777 poetas

que se ampliaram ao descobrir Neruda, Pessoa,

Petrarca, Eliot, Rilke, Whitman, Ronsard e Villon

em tradução ou não

e sem qualquer orientação iam curtindo

um bando de poetas menores/piores

que para mim foram maiores

pois me alimentavam com a in-possível poesia

e a derramada emoção.



Desses sou um dos 666.666 poetas

que fundando revistinhas e grupelhos aspiravam

(miudamente)

à glória erótica & literária

e misturando madrugadas, festas, citações, sonhos

....... de escritor maldito e o mito das gerações

depois da espreita aos suplementos

batem à porta do poeta nacional para entregar

poemas

(com a alma na mão)

esperando louvor e afeição.



Desses sou um dos 555.555

que um dia foram o melhor poeta de sua cidade

o melhor poeta de seu estado

dos melhores poetas jovens do país

e quando já se iam laureando aqui e ali em plena arcádia surpreenderam-se nauseados

e cobrindo-se de cinza retiraram-se para o deserto

a refazer a letra do silêncio

e o som da solidão.



Desses sou um dos 444.444 poetas

que depois da torrente de versos adolescentes e noturnos

se estuporaram per/vertidos nas vanguardas

e por mais de 20 anos não falamos de outra coisa

senão da morte do verso e da palavra e da vida do sinal

acreditando que a poesia tendia para o visual

e que no séc. XXI etc. e etc. e tal.



Desses sou um dos 333.333 poetas

que depois de tanto rigor, ardor, odor, horror

partiram para a impureza (consciente) das formas

podendo ou não rimar em ar e ão

procurando o avesso do aprendido

o contrário do ensinado

interessado não apenas em calar, mas em falar

não apenas em pensar, mas em sentir

não apenas em ver, mas contemplar

fugindo do falso novo como o diabo da cruz

porque nada há de mais pobre que o novo ovo de ouro

gerado por falsas galinhas prata.



Desses sou um dos 222.222 poetas

que penosamente descobriram que uma coisa

é fazer um verso, um poema ou mais

e receber os elogios médio-medianos dos amigos

e outra, bem outra, é ser poeta

e construir o projeto de uma obra

em que vida & texto se articulem

...... letra & sangue se misturem

.....espaço & tempo se revelem

e que nesta matéria revém o dito bíblico

- muitos os chamados, poucos os escolhidos.



Desses sou um dos 111.111 professores

universitários ou não

que antes de tudo eram poetas-patetas-estetas-profetas

e que depois de ver e viver da obra alheia

estupefactos

descobrem que só poderiam/deveriam

sobreviver com a própria

..... que escondem e renegam

por pudor

........... recalque

................... e medo.


Afonso R. de Sant'Anna

2 comentários:

  1. Desses sou um dos 11.111 sobreviventes cansados de lutar com a idade que acumulam procurando um lugar mais tranquilo para viver quando me aposentar...

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