“Percebi que minha vida era feita de covardia, e que na verdade a única coisa que sabia fazer era morrer... E tão somente morrer...
Escrevo estas passagens de minhas vidas-mortes de um lugar onde os sonhos de perdem e a razão desconhece. É o Plano. Pois bem, estou novamente no Plano, onde deverei permanecer por algum tempo, (jamais consegui delimitá-lo) até que o Comissário-Maior estabeleça a data de meu regresso a Terra, ao plano dos mortais...
Pura perda de tempo! Assim que tiver uma oportunidade, volto pra cá! Na Terra chamam isso de suicídio. Eu chamo de sobrevivência. Sou feliz aqui, na pronta recuperação, em tardes sonolentas e paisagens massificadas. Gosto das fisionomias serenas que convivem comigo. Mas eles não entendem isto! Nunca entendem! Querem apenas que eu tome jeito à moda dos homens. Impossível viver entre eles... Mas o Comissário-Maior até que tem sido compreensivo para com minha instabilidade espectro-terrena...
Certa feita, irritado com minha volta inesperada ao Plano, explodiu:
- Outra vez, Kalina? Mas há poucas horas você retornou a Terra! Como é que pôde dar fim à sua vida, se acabava de nascer?
Calmamente respondi:
- Excelência, desta vez não tive culpa! O médico que me trazia ao mundo era residente do SUS...
Indignado, o Comissário-Maior passou um sermão em seu inocente secretário, Noviça, que cuidava do retorno-nascimento de todas as almas ali viventes.
Desconfiada, perguntei-lhe:
- Noviça, você não me mandará de novo para a Terra, não é? Cheguei ainda há pouco...!
Solidário à minha preocupação, o bom secretário (que já foi santo) tranqüilizou-me:
- Certamente que não, Kalina. Mas você não poderá esquivar-se do senhor Comissário para sempre...Cedo ou tarde ele dará um jeito em suas mortes!
Dito isto, Noviça deixou-me só. Caminhei até um banco, onde acomodei meu peso etéreo ao lado de um simpático velhinho, cujos olhos brilhavam de alegre ansiedade. Pensei então, que aquele bom velhinho deveria ter chegado há pouco, e que sua alegria se daria unicamente ao fato de estar ali. Não resisti e perguntei-lhe:
- O senhor dever estar tão satisfeito assim, por encontrar-se aqui, não? O Plano é realmente maravilhoso!
Sorrindo amplamente, o velho balançou a cabeça branca, respondendo:
- Realmente, este lugar é agradável... Mas sinto-me feliz, pois sei que brevemente regressarei ao mundo dos vivos, dos alemães, onde começaremos nosso império novamente!
Sem entender, Kalina observou a súbita mudança nos olhos azuis de seu interlocutor, constatando certo brilho de fanatismo, quando o velho levantou-se, bradando:
- Quero sentir o clamor, a adoração e abnegação de meus irmãos alemães em prol do nazismo! Quero observar a queda de todas as sub-nações que ameaçam a perpetuação da raça ariana! Cantaremos a ascensão do 3° Reich e a continuação do nobre sonho de Herr Hitler! Heil, Hitler! Heil!
Apavorada, (com todo meu pavor latino) fui ao encontro de Noviça, que ouviu meu atropelado relato com evidente tranqüilidade.
- Calma, Kalina! Não se assuste! Herr Klaus (este era o nome do fanático-desencarnado-alemão) não fará nada do que lhe disse! Ele está aqui no Plano, há muito, muito tempo, e continuará aqui até que todas essas idéias absurdas, insanas, desapareçam de sua memória!
Interessada, quis saber:
- Quer dizer que, se uma pessoa vem para o Plano totalmente contaminada por idéias loucas e sem propósitos, é retida aqui?
- É exatamente isto! Insanos, permanecem aqui, até ordem contrária do... ...(apontou o dedo indicador para o alto)...Superior!
- Isto é realmente interessante...! - Observei, mergulhada em planos mirabolantes.
- Veja! - Disse Noviça.
Voltei-me e vi o velho alemão nazista pulando amarelinha com um grupo de garotos judeus.
- É incrível! Ele não disse que os odiava?
Noviça sorriu:
- Por isso ele ainda está aqui... É louco!
Decidida, anunciei:
- Noviça, prepare meu retorno-nascimento imediatamente! Quero voltar à Terra!
Perplexo, Noviça perguntou:
- Você tem certeza?
Não está doente? Quer mesmo renascer?
- Sim! - Foi a resposta firme que recebeu.
- Sendo assim... "
E em pouco tempo, Kalina recebeu as instruções de seu regresso que dar-se-ia no local que ela mesma escolhera, para dar início ao seu cuidadoso plano...
Algum tempo após sua partida, Noviça comunicou ao Comissário-Maior que obtivera sucesso na missão com a então encarnada Kalina...
- Ela, agora, é outra pessoa! Creio que atingiu a maturidade espiritual que tanto lhe fazia falta!...
O Comissário-Maior fitava seu secretário com desconfiança:
- Noviça. Para onde mandou Kalina?
Este aprumou os ombros e com o orgulho da missão cumprida, respondeu:
- Imagine, senhor, que a própria Kalina prontificou-se a me auxiliar na escolha de seu destino...
O Comissário-Maior fechou os olhos.
Desde que soubera da cena de Kalina com o ex-nazista, e seu conhecimento sobre a permanência de insanos no Plano, sua apurada consciência ficara de sobreaviso. Alguma Kalina aprontaria.
- Noviça, em que ano nós estamos?...
A resposta veio imediatamente:
- Em dois mil e oito, senhor!
Levantando-se, o Comissário-Maior continuou:
- Se desejasse enlouquecer alguém, ou causar sérios danos mentais em alguém, para onde o mandaria, Noviça?
Este, sem nada entender, arriscou:
-...Para o Oriente Médio?
O superior balançou a cabeça, negativamente:
- Brasil...
Lívido, Noviça repetiu:
- Brasil!
Aproximando-se do subalterno, o Comissário-Maior perguntou:
- Para onde mandou Kalina, Noviça?!
Encolhendo-se, o secretário murmurou:
- Brasil, senhor...
- O quê? Não ouvi direito!
Noviça estremeceu:
- Brasil, senhor!
- Que é Brasil, já sei, idiota! Quero saber é para onde, em que lugar do Brasil Kalina se encontra, estúpido!
Noviça enxugou o suor que lhe banhava o rosto.
- Senhor, Kalina consultou nosso mapa, e achou conveniente nascer em...
- Em....?
O suor escorria acentuadamente pelas faces do ex-santo.
- E então, Noviça, onde está Kalina?
- Senhor!
Era um dos auxiliares do plantão que adentrava a sala, anunciando:
- Kalina está de volta! Acaba de chegar!
Comissário-Maior e secretário correram aos jardins, onde uma pequena multidão se aglomerava em torno da recém-chegada, que, agitada, não cessava de gesticular e falar.
Todos ouviam, num misto de desalento e reprovação.
- O que houve? O que aconteceu? - Indagava o Comissário. Um ouvinte lhe respondeu:
- Ela está louca! Diz coisas sem nexo algum! Completamente maluca!
- Noviça!!
- Pois não, senhor!
- Diga-me agora: para onde mandou Kalina? De onde ela veio?
Lentamente, o secretário passou o lenço pelo rosto. Baixou os olhos, todo curvado, alma, consciência e voz...
- Senhor, a idéia foi dela...
- O lugar, Noviça....!
-... Brasília, senhor...
O Comissário-Maior balbuciou:
- Brasília...!
Franzindo o cenho, o Comissário-Maior esbravejou:
- Ela conseguiu!...Ficou louca e terá que permanecer aqui...!
Noviça, preocupado, indagou:
- Não há um modo de curá-la?
Seu chefe o fitou, desalentado:
- Você disse... Brasília?
Noviça assentiu.
- Então, não há cura.....
Resignados, aproximaram-se do pequeno grupo que, incompreensivelmente, escutavam-na.
E em todo o Plano, para quem desejasse ouvir, Kalina vivia a gritar:
- GOVERNO LULA!! MENSALÃO! DOSSIÊ DA DILMA! CPI!!! SEGURA O TREM BALA!
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