segunda-feira, 4 de junho de 2012

Dez anos sem solidão - por Paulo Rebêlo

Saindo do forno, crônica do querido Paulo Rebêlo!



Imagem - Reprodução

Sobrevivi a dez anos sem televisão em casa. Não foi protesto contra a qualidade da programação, muito menos um rompante intelectualóide.
Foi apenas falta de tempo e de vontade para usufruir da companhia daquela caixa barulhenta de 14 polegadas cuja antena parecia uma fábrica de bombril.

Muita gente diz que morar sozinho sem televisão é deprimente e solitário. Sempre achei uma noção curiosa, pois nada me deixa mais aliviado do que chegar em casa e ouvir apenas o ronco do motor da geladeira velha e o tilintar do gelo quando a gente derrama aquele resto de uísque ruim que nunca acaba.

Foram dez anos muito bons.

E, para minha surpresa, sem nenhuma ponta de solidão.

No início, foi difícil. A mim, a TV nunca fez muita falta de verdade. Mas sempre foi uma desculpa conveniente para as visitas. Um trunfo auxiliado pelo Corujão e pela Sessão de Gala naquelas madrugadas mais longas quando as moças não querem voltar para a casa delas.

Sem a TV de argumento, o jeito é ficar na varanda com dois copos e dois ouvidos, pois não tardava a ouvir os conflitos existenciais dessas pequenas burguesas preocupadas com o passado, o presente e o futuro.

O resultado de todo o lero-lero era sempre o mesmo, é verdade, mas pelo menos a gente se aproximava mais das pessoas, conhecia melhor os medos e frustrações, as esperanças e anseios.

Nas madrugadas sem TV, consegui escrever dezenas e dezenas de páginas sem distrações, como se não houvesse mais nada para fazer no mundo além de escrever.

Sem TV, devo ter lido mais livros velhos (e bons) do que todos os anos anteriores. E, no intervalo entre uma página aqui e outra ali, lembrava de outras pequenas burguesas que levavam nossos livros emprestados e nunca devolviam.

Não demora até a gente pegar o telefone para saber se elas estão vivas e se os livros ainda existem. E tantas vezes elas estavam apenas esperando aquela ligação no meio de uma noite enfadonha de Tela Quente ou Zorra Total.

Confesso que até tentei ler o livro do Carlos Nejar (História da Literatura Brasileira) que ganhei de presente de uma jovem fanática por literatura. Uma espécie de livro-bíblia sobre os grandes autores nacionais, desde Pero Vaz de Caminha, há 500 anos...

É o melhor remédio para insônia que já vi na vida, mas ela tinha o maior orgulho desse livro. Levei meses para ler dois ou três capítulos e devolvi quando percebi que ainda faltavam trezentas páginas (e 200 anos) para acabar a parte 1.

O que acabou mesmo foi o romance com aquela Paraguaçu albina que me achava meio burrinho por não gostar de autores clássicos como Machado de Assis, Lima Barreto, José de Alencar, Basílio da Gama e dezenas de outros chatos de galocha.

Pois é, os dez anos se passaram e meses atrás comprei uma dessas televisões do tamanho de um elefante de circo.

Não sei se foi uma decisão acertada, pois ainda não consegui me acostumar a tantas mudanças.

Já percebi que agora a novela das oito é das nove. Inventaram também uma novela das onze, porque aparentemente havia poucas novelas na programação.

O Fantástico se tornou uma mistura de programa juvenil com manual de dieta. O Jornal Nacional virou desfile de modelo. O Faustão ficou magro, a Xuxa parou de usar minissaia e jura que virou adulta aos 50. A Angélica jura que virou jornalista.

Fico mudando de canal durante horas e todos funcionam. É meio frustrante você ter uma televisão que pega todos os canais. Bate uma saudade de toda aquela matemática para descobrir qual é o ângulo perfeito da antena de acordo com a velocidade e direção do vento que incidem sobre o bombril.

Ao chegar em casa de noite, agora a primeira coisa que faço é ligar na Globonews. O mundo pode acabar e a gente quer ver ao vivo.

Mas o mundo, que ainda não acabou, ficou bem mais solitário.

Não preciso mais ir ao bar para assistir Jô Soares ou Jornal da Globo.

Não encontro mais os papudinhos que rondam madrugada adentro pela cidade, também sem ter o que fazer, mas sempre dispostos a uma conversa e troca de ideias.

Sei que lá fora deve haver outras moças fanáticas por literatura e por filmes antigos, não sei se fanáticas por carecas barrigudos também, mas, enfim, não as encontro mais porque sempre tem uma entrevista imperdível de Geneton, um dossiê histórico ou alguma nova descoberta sobre o acasalamento dos dinossauros ou o derretimento das calotas polares no Discovery.

Em vez de ler meus livros, tomar minhas doses, escrever minhas leseiras ou telefonar para as burguesas na hora do Zorra Total, não faço mais nada disso porque estou preocupado demais com os africanos famintos, os asiáticos desalojados depois das enchentes, os americanos sem plano de saúde, os europeus desempregados, os brasileiros soterrados e os anjos decaídos. Acho até que me sinto meio culpado.

É tudo verdade, passa todo dia na TV. Desde 1950.

Dia desses, imaginei que pudesse dar fim a toda essa solidão.

Tentei jogar a televisão ladeira abaixo, mas ela é maior do que a janela e não passa. Tentei esconder dentro do armário, mas ela não cabe. Tentei virá-la para a parede, mas é pesada demais. Tentei colocar bombril, mas ela não tem antena. Tentei colocar um porta-retratos com fotos antigas da Paraguaçu albina, mas a TV é muito fina.

Chamei dois amigos para me ajudar a colocar a monstra dentro do carro num domingo desses, mas eles não podiam porque estava passando ao vivo na TV um campeonato de críquete no Sri Lanka.

Eu não sabia nem o que é diabo era críquete, tive que olhar no Google. Acho que continuo sem saber e não sei mais o que fazer.

Mas, quando descobrir, pelo menos será em alta definição.



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