quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Chega de hipocrisia - por Marli Gonçalves

Queremos sinceridade nesta reta final de campanha. Ninguém vai votar para padre de missa ou freira de convento, muito menos para pastor de rebanhos. Está muito chato e ridículo esse debate - estéril - sobre aborto, casamento gay , quem reza mais compenetrado o pai-nosso-de-cada-dia.
Sou mulher. Já vivi para ter vivido, ver e contar muitas coisas. Outras, eu aprendo todos os dias. Agora estou enjoada. E perplexa por ter ouvido nos últimos dias algumas das maiores barbaridades do comportamento político perante a vida real, a realidade de milhões de pessoas, principalmente mulheres. Deixem nossos úteros e vaginas fora disso, por favor. Deixem nossas crenças livres. Apenas façam uma sociedade justa, que do resto a gente cuida. Casa com quem quer, homem, mulher, castrati. Põe no mundo o que dá para por; e às vezes, todos sabem, é muito melhor não por.

Sou mulher, e acharia - repito, acharia - ótimo ver uma mulher na Presidência. Mas uma mulher real, não esse robô cheio de mecanismos com defeito, ventríloqua de palanque que não consegue assumir nem o que verdadeiramente pensa. Nada contra mudar de ideia, quando se evolui. Mas não é o caso da mulher guerrilheira, que diz que não é guerrilheira, que estava por ali apenas vendo a movimentação. Não é o caso da mulher de esquerda com posições seguras, que agora acha que segurando o neto para o batismo convence os outros que mudou de ideia a respeito do mundo filosófico. Ela deve ter se arrepiado toda quando o padre jogou a água benta.

Estamos votando a Presidência da República do Brasil, Estado laico, que deve ver normatizadas as regras para a qualidade de vida de sua população, incluindo questões de saúde pública, como o aborto, e questões da sociedade civil, como casamento, separação e testamentos entre pessoas do mesmo sexo, ou de qualquer sexo. Questões ambientais são fundamentais porque dizem respeito à nossa sobrevivência, e delas dependeremos para comer, beber, e dar vida e comida aos filhos que quisermos ter. Sem garantias básicas, só crescerá o número de mulheres resolvendo dispor do seu próprio corpo justamente para não aumentar os índices, inclusive de mortalidade infantil, subnutrição, e violência. Não é ditadura de alguém achar isso ou aquilo, mandar com o dedinho. O que a sociedade deseja deve ser discutido só nos fóruns adequados, para evitar que tanta hipocrisia grasse como nos debates chulos a que estamos assistindo, perplexos.

Hipocrisia! Não se façam de bobos para a realidade. Há mais de 30 anos a luta pela legalização do aborto é desconsiderada. Não me venham colocá-la agora como questão crucial, desvirtuando a discussão. Não andem para trás. O movimento gay tem conseguido crescer e se firmar com suas próprias perninhas e com muita ajuda dos medicamentos liberados pelo programa do Ministério da Saúde dirigido por José Serra. É mentira? Hoje são comuns nos cartórios as declarações conjuntas de casais iguais. Ninguém precisa de vocês para viver. Muito menos para acuar as conquistas obtidas em debates quadrados. Igreja também não gosta de camisinha, de prazer. Se a gente fosse ver isso, de verdade, todos os templos estariam vazios.

Fiquei assistindo o bigodudo que queria São Paulo, babando, martelando a tecla contra a progressão continuada dos alunos nas redes públicas. Escuta aqui: quem quer ou gosta que o filho repita o ano? Sejamos sinceros pelo menos intimamente. Desde quando só o que é lei é lei? Parem com a hipocrisia de mostrar mães acariciando barrigas gordas, com ar de horizonte perdido. Chega dessa procissão fiada de beija-mão. As crenças são mais verdadeiras do que as palavras do horário eleitoral.
Marina se deu bem porque mostrou a verdade dela, não a sua, a minha, ou a do Partido Verde que, inclusive é o mais liberal de todos em relação a várias dessas teses. Crente, veste-se como crente, fala como crente, comporta-se como crente. Como candidata conseguiu ser mais estadista do que crente. Não mudou uma vírgula do que pensa, mas admitiu o contrário. É isso. Foi isso que a ajudou a conseguir dividir e mostrar esse eleitorado em mais fatias. Por favor, pessoal do marketing dos candidatos: somos muitas fatias! Temos muito que falar, decidir, enfrentar. Não nos diminuam dessa forma.

Esse moralismo de última hora é enojante e está forçando outro tipo de mudança. Corram para a realidade enquanto é tempo, e para que não haja um recorde de abstenções e votos nulos que nos envergonhariam diante do mundo. A gente faz o que pode para participar da vida pública, da cidadania, mostrar coerência.
Agora é a hora de saber qual dos dois vai nos deixar permanecer livres para pensar, falar e agir de acordo com o nosso foro íntimo, nas nossas coisas. Vai me dizer que vocês já não têm muitos assuntos realmente fundamentais para rever? Deixa que a gente cuida de para qual santo vai rezar, ou para o que servem nossos órgãos genitais.
Queremos liberdade. Esse é o ponto. Chega de hipocrisia.
Brasil, São Paulo, 2010: centenas de abortos por dia, milhares de crianças nas ruas, sem tetos, sem terras, sem vergonhas.
Extraído de ucho.info/

Um comentário:

  1. Marli Gonçalves tem o raro condão de fazer das letras uma torquez para extrair de dentro de nós palavras que gostaríamos de ter dito.
    No fundo muitos de nós pensamos como ela, e nem sequer SABEMOS que suas ideias são pensamentos nossos.
    Se tivermos mais uma penca de musas inspiradoras como ela, a Soraia e outras que manejam o verbo com tanta sabedoria, poderemos mudar o pensamento neste País. Por que não?

    Rodrigues

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